segunda-feira, 3 de junho de 2019

Anseio

Navego em mares revoltosos
Com muito pouca certeza
Tento ser forte
Mas a sorte fraqueja
Em minha boca persiste
Um gosto ocre
E os meus olhos
Permanecem secos
Feito barro ao sol.
Apelo aos santos e pinheiros
Faço promessas vazias
Em busca de algum futuro
O silêncio me responde
Tudo será
Ao seu próprio tempo
Ou qualquer merda que o valha.
O caminho das letras
Uma trilha quase apagada
Reluz
No farol dos carros
Ao cair da noite
Sinto o medo
Subir pelas veias
Embolado com o ódio
Que julgava perdido
E conheço tão bem.
Volto agora ao inferno
De que sempre tentei escapar
Desesperado feito um bicho
Querendo renascer
Não choro
Resisto, teimoso
Com algum tipo de fé
Virá outro dia
E amanhã depois
Estarei aqui
Para lutar.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Solstício

Não tive fim
Breve ou nefasto
Tampouco cresci
Conforme prometeram
Fui mesmo ninguém
Minha vitória
Foi saber o mundo
E sua gente toda

Que já não me reconhece
Quando vago desgarrado
Pelos viadutos
Sem meu cobertor
Sou mais um desalmado
Vestido em trajes finos
Fazendo por merecer
A parca esmola

É verdade
Tenho andado mais lento
E propenso à confusões
Como se algo houvesse partido
Enquanto dormia tranquilo
Por esses novos anos
Deixando livre o espaço
Antes preenchido com lembranças

Assim morrem histórias
Com abraços velados
E estrondoso silêncio
Em desastrados encontros
Algumas ainda agonizam
Outras se foram completamente
O esquecer
Isto mesmo não previ

Vez em quando penso
Quantas chances perdi
De demarcar melhor o tempo
Com prole ou navalhas
Bastava algum cuidado
Para aninhar as palavras
Em meio aos sentimentos
Que me desgovernavam

Remorso não há
Apenas leves desconfortos
Sei quase tudo pela metade
Muito embora pouco
O sossego dentro aqui
Faz tanto maior
A grandiosa fera
Embevecida

Às vezes parece que estou
Do lado errado do mar
Contemplando as ruínas
Do que um dia fui
E o tempo
Que já não é tanto meu amigo
Esbraveja insultos
E se vai

Do futuro não sei
Ainda sou forte
E velho
Como o diabo que é sábio
A poesia em mim não morre
Anoitece e acorda
Mas, esta pobre coitada
Merecia muito mais.

sábado, 21 de julho de 2018

Dínamo

Existe um homem
A caminho de casa
Padecendo em silêncio
Em suas viagens
Intermináveis

Decorando a paisagem
Mapeando os rostos
Ele não sorri
Apenas se equilibra
E espera

Por uma grande chuva
Que alagará o peito
De toda cidade
Quando então finalmente
Será preciso ser triste

Para navegar
Pois todos conhecem
A força bruta que existe
Em um animal morrendo
Dentro de si.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Destempero

Eu quero a noite eterna
Dos teus cabelos negros
A sincera companhia
De todos os desejos
Que arrebatam o coração

Eu quero me perder
No relevo do teu corpo
Assentado em minha cama
Desbravar os teus sertões
E descobrir recôncavos

A tua forma esbelta
Repetida em cúmplice
Por dias a fio
Outra remota cidade
A me acorrentar

Juras noturnas
Remendos no peito
Te medico
Para que o corpo acalme
E você não me abandone

Não confessa
A força do teu sentimento
Mas teus olhos gritam
Denunciando o que há
De mais humano

Enquanto desmontamos
Toda defesa
Te vejo, enfim
Revelada
Parte de mim

Eu quero a noite eterna
Dos teus cabelos negros
Eu quero todo o destempero
De um amor
Fadado ao fim.

sábado, 16 de dezembro de 2017

Lírios

Com os dedos dobrados
E os pés enganchados
Em uma marquise
Ou parapeito
De bater
Deitar o eterno sono
Descanso
Morrer é como adormecer

Escuto as vozes dos canos
Encarcerados nas paredes
Contando teus segredos
Mais solitários
Falam
Que viveste para tudo
Que desabotoaste os dias
Com devoção

Memória embotada
Pé descalço no cimento quente
Um poço com tampa de pedra
Viveiro de pássaros
Tudo que jamais se repetirá
Carne assada que desfia
Sorteios na tv
Esconderijo à beira-mar

Jornais amontoados
Discreto mausoléu
Onde jaz embalsamada
Sustentando o redor
Não há quem descubra
O nome certo do chá
Que encoraje a vida
A não se acabar

Mais uma semana
Derrubando previsões
Ninguém sabe
Se por teimosia ou sorte
Não abre mão de ser forte
Nem mesmo no fim
Pois bem. Será tudo como acha
Que as coisas devem ser

O corpo cede
Desvelando o tecido rasgado
Que outrora abrigou alguém
Uma janela filmada
O sol a meio palmo
Te alveja
E alvorece
A morte, outra vez!

O adeus é torpe
Repetido
Mísero murmúrio
Em meio ao asséptico caos
Nos corredores brancos
Os canos sussurram
Torturados nas paredes
Outra vida se esvai.